Estima-se que a população mundial chegue à marca de quase 7 bilhões de habitantes. Desses, apenas 2,8 bilhões, segundo estatísticas da Organização Internacional do Trabalho, estão empregados em trabalhos formais.
550 milhões de pessoas não possuem, como renda, um dólar por dia, vivendo abaixo da linha da miséria. A classe trabalhadora segue ainda hoje sendo explorada, garantindo os lucros dos patrões, das empresas. É a classe trabalhadora que garante que a Royal Dutch Shell, Exxon Mobil, Wal-Mart Stores, BP, Chevron, ConocoPhillips, Toyota Motor, dentre tantas outras, estejam classificadas entre as 10 maiores empresas do mundo. Garantindo, mesmo em anos de crise, montantes gigantes para as empresas.
Da mesma maneira que essa exploração é histórica e fundamental para o atual sistema capitalista, a resistência e organização também são marcas do proletariado. O surgimento de partidos, sindicatos, núcleos, associações, bem como de toda uma teoria contra o capitalismo e capaz de apontar para um cenário de libertação do proletariado marca que a classe trabalhadora resiste e luta contra a exploração e super exploração que está inserida.
A intenção desse texto, contudo, não é expor a opressão da classe trabalhadora e/ou os caminhos que a esquerda historicamente tem construído e acumulado para a mudança social.
Esse texto é para falar daquelas que passam desapercebidas entre ampla parcela da esquerda, ou que foram reduzidas a pontos protocolares em Assembléias, debates, Congressos. Para aquelas que ficam nas casas, garantindo sua gestão, enquanto a “esquerda” vai às ruas. Para aquelas que escutam belos discursos para fora das suas casas, mas quando voltam ao lar, escutam a mesma voz que liberta silenciando-as. Para aquelas que nunca ousaram estar na “esquerda”. Para aquelas que muito provavelmente nunca lerão esse texto. Para aquelas companheiras que ousam estar na esquerda e sofrem, todos os dias na sua militância, pelo simples fato de serem mulheres.
E, em dada medida, para aqueles que nunca nos viram, ou sequer ouviram.
Nós, mulheres, correspondemos a quase metade dos 7 bilhões de habitantes. Somos também a maior parcela vivendo abaixo da linha da pobreza, bem como somos a maioria nos trabalhos informais e precarizados. Recebemos cerca de 30% menos do que os homens, podendo chegar até 55% quando pensamos na questão de gênero ligada à racial, e não possuímos dados concretos sobre diferenças salariais e discriminação no mercado de trabalho quando se trata de mulheres lésbicas ou bissexuais, apenas especulações que apontam para maiores desigualdades.
A totalidade de nosso gênero realiza trabalhos gratuitos, invisíveis, justificados pelo “amor” e que garantem a manutenção desse sistema, muitas vezes não apenas em suas casas, mas na de outras, que atingiram um nível de vida melhor - mas que ainda assim são as responsáveis por garantir que o trabalho seja bem realizado e que não falte nada para ele ser executado. Somos também as responsáveis por perpetuar a prole humana e consequentemente a futura mão-de-obra a ser explorada por uns poucos. Somos responsáveis pelo alimento, conforto e saúde da espécie humana. E por isso nossa autonomia, dos nossos corpos e vidas, foi sequestrada.
Somos, além disso, mercadorias a serem vendidas e controladas através das mídias, produtos e preceitos sociais; nossa sexualidade é destinada aos homens, e não ao nosso próprio prazer. Nossos corpos devem estar sempre à disposição de academias, mesas cirúrgicas e das últimas descobertas da medicina para o “bem-estar”.
Mantemos, assim, uma ampla parcela do mercado capitalista: seja como mão-de-obra barata - afinal, mesmo o mais explorado proletário ganha mais do que a proletária -, seja como consumidoras de produtos para si, para o lar, para as crianças, ou ainda como objetos a serem comercializados e comprados pelos homens.
Mesmo assim, nós, mulheres, somos na maioria das vezes entendidas como pontos secundários na “real luta” do proletariado contra o capital.
Ora, como podemos ser assim percebidas, se dentre o proletariado somos as mais exploradas, e se somos oprimidas e exploradas inclusive pelos companheiros que são explorados pelos patrões? Se, como li uma vez, até o mais miserável trabalhador pode possuir uma escrava em casa, capaz de preparar a comida, cuidar dos filhos e garantir a ordem doméstica? Se somos mais da metade da humanidade que sofre com os impactos do sistema? E, sobretudo, como pode a esquerda tratar em um abstrato a “classe trabalhadora” sem realizar recorte de gênero e cor?
A própria estrutura e maneira do “fazer” político exclui a nós, mulheres. Não são poucos os relatos de mulheres militantes que se relacionam com homens militantes e, quando o casal tem um filh@, a mulher é a única que tem sua rotina alterada, tendo de optar entre a militância ou a maternidade. Quase todos os espaços da militância possuem uma estrutura rígida, hierarquizada, a qual as mulheres muitas vezes não conseguem alcançar. A dinâmica e metodologia dos espaços é pensado da maneira socialmente vista como masculina: racionalismo, com inúmeras disputas, frieza.
E em nenhum momento a esquerda pensa que a maior parte dos seus fóruns são espaços públicos que nunca foram destinado a nós mulheres, e que precisaríamos de mais tempo para aprendermos a ocupar esse espaço que nunca nos foi permitido ocupar. Que uma mulher vista em espaço público é considerada como uma “vulgar”, passível de ser utilizada por qualquer homem. E quantos companheiros da esquerda já se preocuparam se suas camaradas sofreram violência e abusos ao realizar trabalhos de base, em falas públicas etc e, por isso, acabaram por se afastare desses espaços? Quantos companheiros mesmo não são os próprios agressores das suas companheiras, coibindo-as de expor suas opiniões e divergências?
Justifica-se a ausência de quadros mulheres e maior participação pela nossa “inaptidão natural”, sendo que todas nós que militamos sabemos que temos de fazer o dobro que qualquer homem apenas para sermos vistas e minimamente reconhecidas. Mesmo estabelecendo a paridade, existem relatos da dificuldade em indicar nomes mulheres para os postos de direção e em fazer com que sejam tão respeitadas e referências quanto os companheiros.
Quando nós, mulheres, nos organizamos, recebemos, ainda, desaprovação por parte de alguns, ou escutamos piadas sobre nossa militância, o que não se vê com relação a nenhum homem que atue em outro campo da esquerda. Quando tomamos coragem- por já termos participado de espaços que nos permitiram um crescimento maior como militantes e mulheres - e denunciamos alguma situação de machismo dentro da esquerda, somos obrigadas, na grande maioria das vezes, a escutar que temos de compreender o companheiro, que ele cresceu em uma estrutura machista e que não tem culpa; que sejamos companheiras; que estamos ao mesmo lado da luta; que pensemos na conjuntura; que isso pode prejudicar a luta, manchar a imagem da esquerda.
Se nossos camaradas querem, verdadeiramente, construir uma sociedade socialista, como e por que alienam metade da população mundial e aquelas que são oprimidas e exploradas das suas fileiras? Como pensam que pode existir uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária, onde todas e todos tenham liberdade, e não mais haja patrão e exploração, se entendem, nós, mulheres, como escravas, e ainda tratam o gênero oposto da mesma maneira que aqueles que combatem? E não são, afinal, vocês os primeiros a não serem companheiros, compreensivos e que mudam de lado na luta ao se colocarem junto daqueles que nos oprimem e exploram?
Não são vocês os primeiros a bradar a importância de toda a teoria militante, a se matar lendo Marx, Engels, a afirmar a importância de se romper com os vícios pequeno burgueses? E por que não possuem a mesma energia para estudar o feminismo e romper com o machismo que praticam? Por que se apressam tanto em pedir calma e “didática”, em refutar nosso radicalismo, se são ao mesmo tempo os primeiros a bater no peito e defenderem que são ultra radicais e que não deve existir nenhuma piedade com a burguesia?
E quantas de nós não nos sentimos intimidadas de dizer tudo isso em público, ou recriminamos a nós mesmas quando pensamos isso? Quantas não achamos que era melhor não ter feito alguma denúncia porque temos medo de estarmos atrapalhando a luta de classes? Quantas vezes nós mulheres não engolimos todas as opressões e/ou relevamos ações machistas em prol da harmonia e unidade? Em prol de “processos pedagógicos” pelos quais os camaradas “tem que passar”?
No final das contas, quantas de nós não queremos simplesmente desistir da militância porque não nos encaixamos na “esquerda”? Quantas de nós não vamos nos afastando aos poucos dos espaços públicos?
Ser mulher e estar na esquerda não é um processo fácil, mas gostaria de dizer (se assim fosse possível) a todas as mulheres do mundo, e em especial àquelas que já sofreram com companheiros da esquerda - e arrisco a dizer que com isso me refiro a todas as mulheres militantes -, e até para mim mesma, que se queremos um outro mundo não podemos nos retirar da luta, ainda que ela seja dupla para nós: a luta contra o sistema e, muitas vezes, contra nossos próprios companheiros e grupos, que acreditamos serem fundamentais para o processo revolucionário, mas que ainda assim nos oprimem e exploram. .
Ainda que seja muito difícil encarar uma plenária cheia deles te julgando, acreditando que suas denúncias de violência e agressão sexistas são meros golpes políticos, ainda que achem que a violência que sofremos desde que o médico anunciou que somos mulheres é inferior à opressão da classe trabalhadora, é preciso continuar na lut; ainda que nos excluam da classe trabalhadora. É nossa tarefa resistir e garantir que o socialismo seja construído pensando naquelas que mais são exploradas e oprimidas.
Isso não significa, em hipótese alguma, que devemos educar os homens da esquerda. Pelo contrário.
Se sentimos a necessidade de criar uma alternativa de sociedade com a classe trabalhadora devemos fortalecer todas as companheiras que se sentem atraídas pela esquerda, garantir que não tenham medo de falar, de se colocar, garantir redes de fraternidade e solidariedade feminista para que nós mesmas não tenhamos medo de nos posicionar, que consigamos sair da invisibilidade à qual estamos confinadas. Devemos assegurar que nenhuma companheira que realize uma denúncia seja julgada publicamente. Só conseguiremos garantir que continuemos na esquerda e que a própria revolução aconteça (uma vez que somos metade da população mundial) se conseguirmos nos fortalecer entre nós.
Que nenhuma de nós tenha medo de denunciar um homem da esquerda que deixou de ser um companheiro de luta para tornar-se um opressor das próprias mulheres que chamava de companheiras.
Temos de tornar a palavra de ordem “Sem feminismo, não há socialismo” em mais do que uma frase bonita para ser estampada. Faz-se necessário que entendamos nosso protagonismo, que entendamos que somente nós mesmas podemos nos colocar enquanto sujeitas política , e que precisamos nos fortalecer para ter coragem de apontar as contradições de gênero presentes na esquerda e combatê-las.
Se a esquerda ainda não é lugar de mulher, temos de tomá-la para nós. Se não fizermos isso, teremos uma revolução socialista apenas para metade da população, que não servirá a ninguém.