segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O "Estupro Corretivo"

“No final, compreendi
que ser uma mulher
é uma luta sem fim
para viver e ser livre.”

(Joi Barrios[¹])

Um assunto pouco tratado na grande mídia em geral, mesmo sendo um gigante atentado contra os direitos humanos, é a questão do “estupro corretivo”. Termo esse que serve para referir-se à ação de estuprar e torturar uma lésbica com o intuito de “corrigi-la” tornando-a heterossexual, uma “mulher”. E, infelizmente, essa prática está configurando-se como recorrente na África do Sul, dado a infeliz freqüência com que ocorre e a negligência das autoridades.

Os dados são alarmantes. Uma ONG local que trata da questão, a Luleki Sizwe, registrou mais de um caso por dia além da completa apatia policial e governamental perante a situação. No ano de 2008, Eudy Simelane, jogadora da Seleção Feminina da África do Sul e militante contra a homofobia, foi encontrada parcialmente vestida, violentada sexualmente e esfaqueada por uma gangue. Quatro dos responsáveis pelo caso foram julgados; dois condenados a prisão e dois inocentados. Ano passado, Millicente Gaika foi estrangulada e estuprada durante 5 horas seguidas.

Além desses casos, em que sabemos o nome e o rosto da vitima, existem outros numerosos que não são noticiados ou mesmo registrados, já que outra prática recorrente é ter seu registro de ocorrência negado em delegacias. A emissora “Sky News” escutou diversas vitimas e mulheres: todas dizem conhecer ao menos uma pessoa que foi vitima do estupro corretivo e afirmam categoricamente que quem se afirma lésbica corre grandes chances de ser morta.
É uma tragédia humanitária, em especial pela denominação de “Nação arco-íris” cunhada para a África do Sul, por ser considerada pela mídia e governos do mundo uma região com a capacidade de aceitar diferenças, mas que apresenta ironicamente os maiores índices de violência contra as mulheres e LGBTTT;

Uma menina nascida na África do Sul tem mais chances de ser estuprada do que de aprender a ler. Surpreendentemente, um quarto das meninas sul-africanas são estupradas antes de completarem 16 anos. Este problema tem muitas raízes: machismo (62% dos meninos com mais de 11 anos acreditam que forçar alguém a fazer sexo não é um ato de violência), pobreza, ocupações massificadas, desemprego, homens marginalizados, indiferença da comunidade — e mais do que tudo — os poucos casos que são corajosamente denunciados às autoridades, acabam no descaso da polícia e a impunidade.[²]”
.
Frente o descaso da grande mídia em noticiar os casos e, sobretudo dos governos, um grupo “AAVAZ.org- O mundo em ação”, que tem por intuito levar através da internet a opinião publica à política global, desenvolveu uma petição online que será entregue ao presidente Zuma e seu primeiro ministro Radebe (ao completar 750,000 assinaturas e já existem cerca de 618,952), exigindo que se considere o “estupro corretivo” e a homofobia um crime de ódio, sua condenação e aplicação imediata de medidas contra a prática, tal qual educação e proteção às vitimas:


Dezenas de perfis de redes sociais, twitter, listas de emails, blogs, têm divulgado esse abaixo-assinado e felizmente a cada dia mais pessoas tomam ciência desse crime hediondo e engrossam o número dos que são contra a prática. Essa é uma luta de responsabilidade global, tanto no que diz respeito a denunciar e divulgar os casos, quanto conscientizar a respeito dos danos do machismo e patriarcado para nossa sociedade e cobrar medidas punitivas aos criminosos.
Por isso pedimos a todos que assinem a petição, que divulguem em suas listas de e-mails, páginas pessoais e similares, e que deixem claro os problemas de continuarmos vivendo sob um regime patriarcal.

Lembrando, também, que devemos, cotidianamente, lutar contra essas situações e que nossa rubrica não pode de maneira alguma nos aliviar a consciência, ou nos ausentar da luta.


[¹]Joi Barrios é uma escritora e ativista filipina. O Título original do poema é "Ang Pagiging Babae Ay Pamumuhay sa Panahon ng Digma"
[²]Recebemos por e-mail o texto da Avaaz,
Pare o estupro corretivo. Você pode lê-lo na íntegra em: http://va.vidasalternativas.eu/?p=3000, Acessado em 30/01/2011

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quem mandou nascer mulher?

Essa talvez seja uma pergunta que muitos não entendam. Quem mandou nascer mulher?
Podemos começar a resposta para essa pergunta (apenas começar, dada a extensão de possibilidades abertas pela questão) com a máxima de Simone De Beauvoir: “Ninguém nasce mulher. Torna-se”.

Mas, afinal, o que é tornar-se mulher? Os seres humanos nascem, a rigor, machos ou fêmeas, tornando-se, a partir de sua educação, homens e mulheres. Diferentemente do que se apregoa, tornar-se homem ou mulher não é uma transição natural, constituida por hormônios: é uma questão social. Ao nascer, garotos e garotas têm cada um uma educação diferente. Garotas são criadas para cumprirem determinado papel social, enquanto os garotos são criados para outro. A educação diferenciada para meninos e meninas é algo que vai desde o ambiente familiar até a escola. Não é o objetivo, por hora, aprofundar-se nas contradições de nosso sistema educacional; mas, a título de exemplo, vale a pena citar alguns fatos de conhecimento mais ou menos geral: a divisão entre os sexos nas aulas de Educação Física (e inclusive a estigmatização de esportes como “femininos” e “masculinos”), meninas serem consideradas “mais comportadas” e “mais cuidadosas” do que os meninos, enquanto os garotos seriam mais bagunceiros, menos cuidadosos.

Em outras palavras, o gênero é a construção social do masculino e do feminino¹.Ou seja, o gênero não é natural. O papel atribuído a homens e mulheres é construído, é social, cultural, passível de mudança. Não existe uma lei natural, pretensamente biológica, que defina que mulheres devem agir de uma maneira e homens de outra.

Não é permitido à mulher sair dos padrões estabelecidos para seu comportamento (por ser considerado algo como uma quebra de contrato). Uma mulher que não siga determinados parâmetros corre o risco de ter sua “identidade” questionada, inclusive sua sexualidade (afinal, ela seria identificada como não sendo mulher – o que acarreta uma série de preconceitos que não rotulam somente a mulher heterossexual, mas também a homossexual, aproximando-a do que seria “masculino”). O raciocínio é mais ou menos o seguinte: se uma moça não se comporta como é esperado, concluí-se que ela é lésbica, um “homem”.

Vale lembrar que , se existe um modelo do que é “feminino”, também existe um modelo do que é “masculino”, modelos estes que atuam um em oposição ao outro. Essa relação, no que tange à liberdade de comportamento, acaba por também ser prejudicial para o homem - em diferentes níveis, que serão explicados mais adiante. Se um garoto é sensível ou frágil, sua identidade e sexualidade podem também ser colocadas em questão, afinal, sensibilidade e fragilidade seriam características estritamente femininas, enquanto as características masculinas seriam a força, a brutalidade etc.

Agora, o segundo ponto: Quem mandou nascer mulher?

Três em quatro mulheres um dia sofrerão algum tipo de violência, e esse não é um problema exclusivo de países subdesenvolvidos, ou de “terceiro mundo”. De acordo com estatísticas na Colômbia, a cada minuto pelo menos seis mulheres são agredidas; na Espanha, um estudo demonstra que durante o período de gestação a violência contra a mulher pode se intensificar, o que leva a abortos espontâneos, doenças físicas e psicológicas; a Nicarágua apresenta os mesmos índices de violência sexual que países ocupados militarmente (onde estupros são utilizados como armas).

Entre 40% e 70% das mulheres mortas são assassinadas por seus maridos ou namorados em países como Austrália, Canadá, EUA, Israel. Mais da metade de todas as mulheres assassinadas na África do Sul, em 1999, foram mortas por seus parceitos, resultando em um feminicído íntimo a cada seis horas.Entre 40% e 50% das mulheres na União Européia sofrem de assédio sexual em seu ambiente de trabalho.

A mutilação sexual contra mulheres em alguns países (como a Guiné, Egito e Eritréia) também é assombrosa: a percentagem de mulheres de 15-49 anos que sofreram e sofrem dessa violência é extremamente alta, aproximando-se de 100%.

Os dados apresentados são a forma escancarada do que apresentamos anteriormente: vivemos em uma sociedade que prima pela supremacia masculina em detrimento da liberdade feminina, uma sociedade patriarcal.

A luta pelo feminismo e direito das mulheres, mesmo com esses dados alarmantes, contudo, continua sendo ignorada. O machismo se prolifera como uma situação normal, entre piadas, músicas, postagens de blogs, anuncios de cerveja, mantendo um pensamento arcaico responsável pela morte anual de milhares de mulheres no mundo todo.

Esses preconceitos disseminados na sociedade podem ser visto inclusive na esquerda. Nós que temos uma pequena experiência no Movimento Estudantil podemos perceber que alguns militantes quando não negligenciam a referida pauta, tecem comentários machistas, opressores, muitas vezes ridicularizando a causa, sem perceber que o machismo e o sexismo estão no mesmo patamar que o racismo, a homofobia, e a xenofobia, cometendo o terrível deslize de criar uma hierarquia das opressões.

Mas, lembremos: os seres humanos fazem sua própria história. Dentro de determinadas condições, somos capazes de agir de maneira a mudar nossa realidade, e é essa a nossa intenção. Ajudar, de alguma maneira, no desenvolvimento teórico da luta feminista, não mantendo-se, porém, somente na teoria: é preciso transformá-la em prática, força material, ações concretas.

Ocupando todos os espaços possíveis, e resgatando a importância da pauta para a esquerda. Em um movimento feminista ambicioso e radical, consciente de que seu inimigo é uma constituição de sociedade, o patriarcado. Um movimento consciente de que a nossa meta é mudar toda uma configuração do que é ser mulher na sociedade. Expondo para quem quiser ver como fomos -machos e fêmeas- transformados em produtos de masculino e feminino com o passar dos séculos. Não sendo, essas, condições naturais. Repetindo uma vez mais Simone De Beauvoir: ninguém nasce mulher, torna-se.

Por isso é sempre válido lembrar:

Meu nome é resistência. Leia-se: mulher!


[1] SAFFIOTI, Heleieth I.B, Gênero, patriarcado, violência, ed. Fundação Perseu Abramo, p. 45.