quarta-feira, 23 de março de 2011

Quem está por detrás das estatísticas

Sou mulher, lésbica, e de esquerda. Já escutei muito que era um desejo de ser “minoria”, já escutei muito que é paranóia, já escutei muito sobre liberdade sexual e de que vivo em uma democracia.

Nunca acreditei nisso, porque vivo na pele a discriminação por ser uma mulher, por ter nascido com uma vagina; Me fizeram objeto de decoração, me deram um estereótipo, um comportamento, um biótipo, me deram “minhas” palavras. Sinto todos os dias um medo de demonstrar meus afetos porque sou lésbica. Ainda que viva em um ambiente ligeiramente libertário, que toda minha família saiba, sofro na pele a discriminação do meu amor. Não somente quando estou com outra mulher, mas, também, em círculos sociais, nos quais você fica cuidando para não ser tão afetuosa e suas amigas não acharem que você está dando em cima delas, em usar certo tipo de roupa para que não fiquem me chamando de “caminhoneira”. Sou de esquerda, militante. Acredito na revolução e a construo diariamente, escuto sempre que somos desocupados, que somos “saudosistas de 68”

E essas três coisas, que são meu tripé de identidade, que me fazem ser o que sou e que garantem que nunca tenha deixado a vida, são exatamente pelas quais sinto medo. Porque vivo em um Estado terrorista de bandeira hasteada, contra meu gênero, minha sexualidade, minha posição política. Não posso andar livremente, não posso amar livremente, e não posso me expressar livremente.

Todos os dias vejo estatísticas e dados sobre violência contra a mulher e contra LGBTTT, todas oferecidas de uma forma mecânica, impessoal, sem citar nome. Tod@s nós convertidos em uma cifra impressa no papel, em mera estatística. Uma legião de sem rostos que tem todos os dias sua dignidade arrancada, a vida ameaçada porque paira um consenso (hipócrita, porque poucos assumiriam isso) de que não somos gente, de que somos pequenas aberrações que a psicanálise, a religião, a ciência podem curar. Um consenso de que os “cidadãos de bem” podem pedir a seu deus que nos cure do nosso amor “errado”, de que podem pedir à ciência deles alguns tratamentos para nos livrar desse “mal”, de que podem explicar por teorias nossa “atração”.

Esses “cidadãos de bem”, fervorosos defensores da moral e dos bons costumes, mantém seus filhos longe de nós, nos impossibilitam a união civil, a adoção de crianças, a educação sexual para homossexuais. De acordo com sua cartilha estúpida, somos seres promíscuos, sujos. Por isso podemos ser espancad@s, violentad@s, estuprad@s, xingad@s. Tudo de acordo com a boa moral do homem branco e heterossexual.

Mas, por detrás de cada número, existe um rosto, escondido da família “de bem”, que não entra nas menções do casal Boner.

Hoje tomei ciência de que um desses rostos era de um conhecido meu, um companheiro militante, uma pessoa que vejo há um ano todos os dias. Espancado na esquina da sua casa por ser gay. Espancado na esquina da sua casa por não seguir um padrão. Espancado na esquina da sua casa por dois “cidadãos de bem”, que transitam livremente pelas avenidas da cidade.

Além dos hematomas, da tristeza, da humilhação, esse companheiro tem também em mãos um B.O. no qual a delegacia não quis registrar a queixa como agressão por homofobia. E isso levaremos todos para o resto das nossas vidas.


Me restam muitas lágrimas de desespero, um ódio por toda essa hipocrisia social, me resta um desejo gigante de que a revolução venha, me resta que seja somente possível um dia sair a rua sem medo. Me resta esperar menos hipocrisia. Me resta esperar um momento em que ninguém acredite que seu amor/atração/afeto por outrém é maior e mais legítimo do que o nosso. Me resta, ao menos, não escutar mais que não tenho motivos para militar, para fazer da minha vida a militância e meu único desejo a revolução.

domingo, 20 de março de 2011

Obstetrícia da USP, onde ficamos nisso?

A saúde da mulher sempre foi tida como situação secundária, bem como sua figura nas ciências biológicas, como todas nós sabemos. O curso de Medicina da USP, por exemplo, trata pouquíssimo ou nada das questões que concernem a saúde da mulher: dentro de toda a grade curricular, somente quatro disciplinas tocam especificamente em pautas femininas. Enquanto doenças como o câncer de próstata recebem mais verbas públicas para pesquisa e tiveram seu diagnóstico e tratamento bastante desenvolvidos nos últimos 5 anos, o câncer de mama, por exemplo, tem suas pesquisas mantidas graças a investimentos majoritários do setor privado, e muito pouco ou quase nada se avançou.

A saúde da mulher e suas patologias e carências específicas pouco recebem atenção. Nas últimas décadas vemos o fenômeno das cesáreas crescer vertiginosamente (48%, sendo que na rede particular vão de absurdos 70% a inimagináveis 90%, quando a Organização Mundial de Saúde preconiza que o
número de cesáreas não ultrapasse os 15%) desacompanhado de qualquer auxílio ou possibilidade de escolha por parte das mães, somado ao alarmante dado de 25% das mulheres que alegam terem sofrido algum tipo de maltrato enquanto estiveram hospitalizadas para darem a luz.

“Na década de 90, as estatísticas do Ministério da Saúde apontavam que as complicações do trabalho de parto representavam a terceira causa de internação, ficando também em terceiro lugar como responsáveis pelos maiores gastos globais com internação hospitalar.”

Frente a isso, o curso de Obstetrícia da USP (o único do Brasil inteiro) foi re-fundado com o intuito de prestar atenção a fatos geralmente deixados de lado nessa busca por melhor atendimento às nossas
necessidades no que tange a maternidade e o parto, seguindo o modelo europeu. Esse mesmo curso existiu até 1971 na USP, quando é fechado devido ao artigo “6º do Estatuto da Universidade, que não admitia a “duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes no mesmo município”. Esse princípio se mantém no artigo 11º do atual Estatuto da Universidade de São Paulo.“ Alegaram, portanto, que o curso de Enfermagem era capaz de formar obstetras e que, portanto, o curso de Obstetrícia feria o estatuto vigente.

Mas se compararmos as duas grades curriculares do curso, veremos que a proposta do curso de Obstetrícia diferencia-se e muito do de Enfermagem [1], inclusive na abordagem realizada sobre o parto, a gravidez, o pré-natal e o acompanhamento da mãe e do recém-nascido. Logo, percebemos que o curso de enfermagem não abarca as mesmas questões.

A reabertura do curso, contudo, também não conseguiu garantir uma melhora palpável no atendimento à mulher. Além do pouco tempo de existência do curso (completaria seis anos em 2011), começamos pelos problemas em se reconhecer o bacharelado, e conseqüentemente, de ser empregado depois de completar a graduação, sua localização em um campus novo da USP (EACH) que recebe menos visibilidade que outros, o que gera um vestibular pouco concorrido e o faz entrar na lista dos cursos de baixa demanda social, as seqüentes reformulações em sua grade, dentre outros. Existe ainda a problemática de que essa profissão é menos valorizada pelo fato de que nosso sistema de saúde está atrelado também ao sistema, e, portanto, visando o acumulo de capital. Ou seja, é preciso fazer tudo no menor tempo possível com o maior ganho:

“cesárea leva 20 minutos, enquanto no parto vaginal o médico tem que permanecer no hospital por
12 horas ou mais.”


“Médicos e hospitais quase sempre são bem melhor remunerados pela cesárea do que pelo parto vaginal.
Estudos dos EUA mostram que as candidatas mais prováveis à cesárea são mulheres brancas, casadas, que possuem plano de saúde privado e que dão à luz em hospitais particulares.”

Logo, a obstetrícia não corresponde a esse sistema hospitalar, não sendo interessante sua implementação em larga escala, ou melhor, nem sendo estimulada.  Por esses motivos ele sofre a ameaça de ser fechado, ou ter o número reduzido de vagas no próximo processo seletivo. Ou seja, ao invés de se implementarem medidas que valorizem a profissão, negociar o reconhecimento da profissão devido sua necessidade às mulheres, e realizar uma reforma curricular baseada nas necessidades do corpo discente e docente, Boueri, diretor da EACH, realiza uma afronta à todo um projeto de educação e ensino que reconhece as especificidades e demandas do parto e pós-parto, caracterizando um prejuízo e ataque às mulheres brasileiras. 

Além disso, essa atitude evidência o projeto de reforma divulgado ano passado pelas mídias em geral e apresentado pelo reitor João Grandino Rodas sobre as “modernizações” nas graduações da USP. Mudanças essas que podem começar a acontecer em outros cursos, tal qual Letras, Pedagogia, Geografia,
Filosofia; por não estarem ligados à critérios mercadológicos, nem atenderem a chamada “demanda social”, ou seja, relação candidato/vaga alta.

O Movimento Estudantil da USP vem discutindo desde então o que essas mudanças representam para a Universidade, tentando levar o debate ao maior número possível de alunos. Entendemos que esse ataque que o curso da EACH sofre está vinculado a uma série de reformas que se anunciam e por isso
chamamos tod@s para o ato em solidariedade à Graduação de Obstetrícia e também para marcamos presença e dizer que nós não aceitaremos que nossa educação e saúde sejam leiloadas!

dia 22, terça-feira, às 9h em frente à reitoria!

A reitoria da USP fica no campus Cidade Universitária do Butantã, na rua Anfiteatro, 513.

Divulgamos aqui, também, o link do abaixo-assinado contra o fechamento do curso: http://www.abaixoassinado.org/assinaturas/assinar/8452




[¹] As duas grades curriculares dos cursos: Enfermagem: http://www.ee.usp.br/ensino/graduacao.asp e Obstetrícia: http://www.each.usp.br/obstetricia/curriculo.htm

quinta-feira, 10 de março de 2011

A linguagem da opressão

“Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação.”[1]

Um dos nossos principais meios de luta é a linguagem, pois graças a ela conseguimos nos organizar e nos agregar em torno da causa. A linguagem, por sua vez, está diretamente sujeita ao falante, porque é justamente ele que a constrói.

Ou pelo menos deveria ser.

Por enquanto, quem – ainda – a dita são os homens brancos e heterossexuais. Acontece que esses, a fim de se manterem no poder, aprofundam os meios de opressão ligados ao falante e ao modo que se expressa. Tudo isso porque a linguagem da opressão procura ser sutil (sem muito sucesso, mas mais sutil que a agressão física) e, portanto, é menos mal vista.

“Com a equação lacaniana de "a natureza das coisas" e "natureza das palavras", o sexismo situa-se na própria linguagem.”[2]

A sociedade, fundada sobre os eixos do masculino e da heterossexualidade, encontra formas menos óbvias para expor seus preconceitos. Isso não significa que outras formas de opressão e dominação estejam diminuindo ou acabando, nem que o preconceito chamado “lingüístico” (que é, sim, um preconceito social) seja um preconceito novo ou recente.

"Numa época em que a discriminação em termos de raça, cor, religião ou sexo não é publicamente aceitável, o último baluarte da discriminação social explícita continuará a ser o uso que uma pessoa faz da língua" (James Milroy)[3]

Sim, é claro que antigamente havia variantes na língua. E que eram exatamente estas que distinguiam as classes sociais. A situação hoje é bastante similar, embora muitos tendam a dizer que não, que ninguém desqualifica os argumentos de outrem por seu português incorreto. Essas pessoas ou não são oprimidas ou não discutem ou falam o que escutam sem ter o mínimo de embasamento científico.

O que acontece é que a sociedade nos impõe certas regras. Mas são essas regras apenas regras gramaticais? Debochar da fala de uma pessoa é natural? De onde vieram esses valores? Quem dita a norma culta? Essas perguntas já foram respondidas no início do texto: são os doutos, isto é, os homens brancos e heterossexuais.

A linguagem passa (passa?) a ser apenas um jogo de prestígio e poder. Se sou um homem de uma classe superior e cometo alguns deslizes da norma culta, tudo bem, sem problemas. Se sou uma mulher, que ocupa um cargo considerado, pela sociedade, masculino e cometo um erro serei corrigida pro todos os homens que me escutaram.

“As mulheres são mais cuidadosas que os homens em usar a gramática correta(...)Há, porém, do ponto de vista sociolingüístico, uma explicação mais óbvia para o silêncio e fala diferente das mulheres que a "falta" do falo simbólico de Lacan. Não surpreende que as mulheres estejam silentes considerando-se a sua falta de poder. É certo que o direito de falar foi conseguido em parte. Mesmo quando o direito das mulheres de falar em público não é abertamente contestado, poucas mulheres falam. Em suas conversas íntimas com membros do sexo oposto, as mulheres falam menos, menos freqüentemente, e são mais interrompidas. Os sociólogos situaram essa "incompetência" não numa identidade simbólica da mulher, mas na sua situação como impotente. Se os tópicos que as mulheres apresentam fracassam, não é porque sua capacidade simbólica esteja prejudicada, mas porque os homens não se dão ao trabalho de reciprocamente responder ao que elas dizem.[4]. O ponto que gostaria de ressaltar é que o preconceito lingüístico não passa de um preconceito social: de classe, de gênero e/ou de raça.

Imaginem agora que uma mulher assume o cargo de presidenta do país. Imaginem que essa mulher, ao participar de debates na televisão não se porta como esperam que uma mulher se porte. Não é delicada e simpática, é bastante enfática ao dizer o que defende (mesmo com as minhas discordâncias com o PT, não é algo que dê para negar). O que acontece?

A mulher que não seguiu os padrões de mulher não é mulher, simples assim. Um preconceito muito misógino, por sinal. Questionam sua sexualidade dizendo que ela foi agressiva no falar. Seu oponente, homem branco e heterossexual (que coincidência, não?), ao ser igualmente agressivo no falar é enfático e sabe defender suas idéias. Ela é, no mínimo, grossa.

Dilma nadou contra a corrente, assim como a Marina – embora de formas diferentes. As duas se colocaram para falar. Afinal “Falar é assumir poder, e as mulheres, como observou Beauvoir, deixam de se afirmar nesta como em outras áreas”[5].

A linguagem é um produto político-social e, como tal, ela não apenas dá mais crédito a quem está “no comando”, como também procura destruir aqueles que seriam seus “subordinados”. Assim sendo, parece óbvio que a linguagem é machista, homofóbica e racista.

“Há apenas uma linguagem e nela as mulheres estão em significativa desvantagem. Elas falarão sempre com uma autoridade de empréstimo e sempre terão problema com o conhecimento analítico-racional do "que se diz".”[6]

A nossa construção social nos impõe um estilo de fala, de expressão. E não apenas a nós, mulheres, mas a diferentes classes sociais e posições sociais. Quanto maior seu prestígio, mais “correto” você deve falar. O resultado? Uma estagnação social baseada na língua erudita que, cá entre nós, sequer existe.

Como mulheres, devemos falar em tom dócil e amável. Não podemos ser agressivas, afinal, isso é coisa de homens. É sabido também que, por sofremos coerção dos homens, muitas vezes temos receio de nos posicionarmos. Isso quando há qualquer relação de poder, na verdade. Chefe e empregado, pai e filho. Mas entre o sexo masculino poderoso e o feminino subordinado, isso aparece ainda mais. Além do receio de sermos coagidas, há a coerção em si. Quando nos repreendem por falarmos de determinado modo, ou fazem uma piada por errarmos uma palavra, pleonasmos,etc.

“As mulheres falam cada vez menos freqüentemente que os homens. As mulheres são mais cuidadosas que os homens em usar a gramática correta, são mais conservadoras quando se trata de inovação estilística, usam adjetivos de emoção de preferência a de movimento, formam metáforas conflitantes, ambivalentes, de preferência a lugares-comuns. As mulheres mostram preferência também por estruturas modais como "poderia ter sido", indicando incerteza e indecisão. Outras diferenças, empiricamente menos estabelecidas mas observadas, são o uso, pelas mulheres, de adjetivos "vazios" tais como "encantador" ou "amável" ou de perguntas reiterativas, como "entendeu?", "certo?", para atenuar a força afirmativa, além da tendência das mulheres a serem mais polidas e mais receptivas.”[7]

O patriarcado nos oprime na expressão. Vivemos em uma suposta democracia, que garante os mesmos direitos a todos (essa é a hora das risadas), mas não nos é permitido falar.

Temos também a questão das palavras comuns de dois gêneros, aproveitando o ensejo. Como quem domina a linguagem dita culta são os homens, temos um certo receio quanto a algumas mudanças naturais da língua.

Não apenas as mudanças como você>>cê, mas também mudanças necessárias, de posicionamento político mesmo, como os gêneros das palavras. Não há nenhuma explicação razoável (lembrando que “mas é regra gramatical” não vale, pois as línguas estão em continua mutação) para não se mudar os plurais e as palavras “comuns de dois gêneros”.

Cito aqui a Pilar del Rio em uma entrevista bastante conhecida:

“Pilar del Rio: Só os ignorantes é que me chamam presidente. A palavra não existia porque não havia a função, agora que existe a função há a palavra que denomina a função. As línguas estão aí para mostrar a realidade e não para a esconder de acordo com a ideologia dominante, como aconteceu até agora. Presidenta, porque sou mulher e sou presidenta.

João Céu e Silva: Mas a palavra não existe!

Pilar del Rio: Porque é que entre uma mulher e um animal tem primazia o gênero do animal? Porque dizem “Vêm os dois” se é uma mulher e um cão quem vem? Em vez de dizerem que não se pode dizer presidenta, mas ministra sim, solucionem essa injustiça e canalhice. Que os doutos acadêmicos resolvam um conflito que tem séculos porque não têm sensibilidade para apreciar a questão ou nem se aperceberam. Por isso, justificam com leis gramaticais ou simplesmente silenciam e riem-se das pretensões da mulher porque se acham superiores. Em quê?”(grifos meus)

Não vamos pensar que isso tudo é pouca coisa. Talvez seja pouco, se comparado com todos os outros preconceitos e abusos que sofremos. Mas é um pouco que não abro mão de lutar também. É o pouco que me garante uma mínima liberdade: a de falar. E não me calo ou deixo cair por uma correção, zombaria ou interrupção. Bater o pé é a única solução.

Precisamos fazer com que haja uma mudança de pensamento a respeito da língua e, principalmente das relações entre aqueles que a utilizam. É fato que as línguas mudam. A sociedade precisa mudar também.

colaboração de Paula Penteado

[1] BUTLER, Judith, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, página 19

[2] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 204

[3] BAGNO, Marcos, Mídia, preconceito e revolução in A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira, página 13

[4] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 206

[5] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 206

[6] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 204

[7] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 205

terça-feira, 8 de março de 2011

O 8 de março é vermelho

“O dia das operárias de 1917 foi uma data memorável na história. Nesse dia, as mulheres russas levantaram a tocha da revolução proletária e atearam fogo ao mundo. A revolução de fevereiro acabara de começar". (Alexandra Kollontai) [1]

Com a chegada do Dia Internacional (de luta) da Mulher, nós, enquanto feministas, temos o dever de colocar algumas discussões em pauta, pois com a transformação do 8 de março em uma data bastante comercial (que,além de tudo, joga com a função social de sermos mulheres femininas, dóceis e perfumadas), muitas pessoas acreditam que não há mais sentido em comemorá-lo (como se fosse realmente uma comemoração...). Há quem diga, ainda, que o 8 de março é sexista e que deveria haver um dia do homem, mas esse discurso vem daqueles que acreditam que o movimento feminista busca escravizar os homens (e outras bobagens), portanto, nem vale a pena ficar muito tempo discutindo isso.

O que queremos discutir aqui é justamente a origem dessa data e resgatar seu caráter original. Em primeiro lugar, não é uma data que nos foi cedida como uma homenagem, diferentemente de outras, como o dia dos pais, das mães, dos namorados etc. O peso que traz o 8 de março não é para nos presentear, ou mesmo nos parabenizar. A vitória não é ser mulher, pura e simplesmente, mas sim lutar para sermos mulheres à nossa maneira, lutar contra todos os tipos de opressões. Uma coisa que deveria ser óbvia, mas muitos não enxergam é que mulheres e homens não vivem em pé de igualdade; por isso o dia da mulher ser um dia de luta. É um dia simbólico que lembra (ou deveria lembrar) a todos que vida de mulher não é fácil. O Dia Internacional de Luta da Mulher é uma conquista nossa, algo que foi desencadeado justamente pela luta feminista.

Porém, outra coisa que devemos lembrar é que ele não é um simples dia de luta feminista. Ele é um dia de luta feminista e socialista. E é aqui que entram as origens do Dia Internacional da Mulher.

Há um mito de que o Dia Internacional da Mulher tem sua origem em uma greve de tecelãs no ano de 1857, em Nova York. A grevistas teriam sido presas dentro da fábrica e os patrões ateado fogo ao lugar, resultando em mais de 130 trabalhadoras mortas. A data teria sido marcada para relembrar esse dia.

Isso, todavia, é a história que nos contam nas escolas e se divulga na mídia. A realidade é que não existem evidências históricas da existência dessa greve. Diversas foram as pesquisas feitas sobre o assunto, entre elas, a de Renée Coté, autora do livro O Dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas. A autora buscou referência à greve de 1857 e à morte das mulheres em vários jornais, inclusive operários, mas não encontrou nada.

"Em 3 maio de 1908 em Chicago, nos Estados Unidos, se comemorou o primeiro "Woman's
day” (Dia da Mulher), presidido por Corinne S. Brown, documentado pelo jornal mensal The Socialist Woman, no Garrick Theather, com a participação de 1500 mulheres que "aplaudiram as reivindicações por igualdade econômica e política das mulheres; no dia consagrado à causa das trabalhadoras". Enfim, foi dedicado à causa das operárias, denunciando a exploração e a opressão das mulheres, mas defendendo, com destaque, o voto feminino. Defendeu-se a igualdade dos sexos, a autonomia das mulheres, o direito de voto para as mulheres, dentro e fora do partido.

Já em 1909, o “Woman's Day” foi atividade oficial do partido socialista americano e organizado pelo comitê nacional de mulheres, comemorado em 28 de fevereiro de 1909. O material de publicidade da época convocava o "Woman suffrage meeting", ou seja, um encontro em defesa do voto das mulheres, em Nova York. Renée Coté apura que as socialistas americanas sugerem um dia de comemorações no último domingo de fevereiro. Assim, o “Woman's day”, no início, registra várias datas e foi ganhando a adesão das mulheres trabalhadoras, inclusive grevistas e teve participação crescente.

Em 1910, os jornais noticiaram a comemoração do “Woman's day” em Nova York, em 27 de fevereiro de 1910, no Carnegie Hall, com 3000 mulheres, onde se reuniram as principais associações em favor do sufrágio. O encontro foi convocado pelas militantes socialistas mas contou também com participação de mulheres não socialistas. Também participaram dessa comemoração várias operárias do setor têxtil que há poucos dias haviam terminado uma longa greve, que durou de novembro de 1909 a fevereiro de 1910, terminando 12 dias antes do Woman's Day. Essa foi a primeira greve de mulheres de grande amplitude nos Estados Unidos, denunciando as condições de vida e trabalho, e demonstrou a coragem das mulheres costureiras, recebendo apoio massivo do movimento sindical e do movimento socialista." [2]

Ou seja, não só não existe a mítica greve de 1857, como toda a luta das mulheres estadounidenses é feminista e claramente classista.

No mesmo ano de 1910, no Segundo Congresso Internacional de Mulheres Trabalhadoras, Clara Zetkin, militante socialista alemã, apoiando-se na experiência das operárias dos Estados Unidos, propõe que exista um Dia Internacional da Mulher Operária, ou Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, sem uma definição de dia. A informação mais exata (pois há muitas) é de que ficaria a cargo de cada país escolher a melhor data. As Alemãs escolheram o 19 de março:

No dia 19 de Março no ano da revolução de 1848, o rei Prussiano reconheceu pela primeira vez a força do povo armado e concedeu perante a ameaça de uma insurreição proletária. Entre as várias promessas feitas, que mais tarde não manteve, estava a introdução do voto para as mulheres. [3]

Alexandra Kollontai, em seu texto “Uma celebração militante” [4], afirma ter sido oficializado o 8 de março como o Dia Internacional da Operária em 1913 (primeiro ano em que comemorou-se o dia na Rússia, aliás). Por outro lado, há informações de que em 1914, na Alemanha, as comemorações tenham sido realizadas no 8 de março somente pelo fato de que essa seria a melhor data.

Em 1917, na Rússia, em meio a grandes e diversas manifestações femininas, eclode uma greve de operárias têxteis justamente no Dia Internacional da Mulher, 23 de fevereiro no calendário russo, correspondente ao nosso 8 de março. Trotski descreve esse acontecimento como uma mobilização de papel decisivo para a revolução que se seguiria pelos próximos dias:

Trotski conta que o dia 23 de fevereiro (8 de março), era o Dia Internacional da Mulher. Estavam programados atos, encontros etc. Mas não se podia imaginar “que o Dia da Mulher pudesse inaugurar a revolução”. Estavam sendo pensadas ações revolucionárias, mas sem data prevista. Mas pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixam o trabalho de várias fábricas e enviam delegadas para solicitar o apoio à greve... “o que se transforma em greve de massas.... todas descem às ruas. [5]

Por fim, em 1921, na Conferência Internacional das Mulheres comunistas, coloca-se o 8 de março como data oficial do Dia Internacional da Mulher Operária, em homenagem ao levante das trabalhadoras russas.

A data, portanto, como podemos observar, não é um dia do calendário que nos foi ironicamente dedicado pelo patriarcado e pelo capitalismo por sermos mulheres. Foi uma data conquistada, pelo feminismo socialista. Uma data que deve ser lembrada como luta por um mundo sem exploração.

O Dia Internacional da Mulher surge como uma proposta socialista, pois a luta da mulher é socialista. Sim, existem vertentes do feminismo que não questionam a sociedade de classes, mas esse feminismo limita-se à conquista de direitos formais iguais aos dos homens. E bem sabemos que isso não basta. A tentativa de retirada do caráter socialista do Dia Internacional da Mulher (aliás, há de se afirmar: a retirada de qualquer tipo de politização, mesmo que não socialista) serve apenas para fomentar ilusões de que as mulheres já tiveram seus direitos conquistados, quando, na verdade, para ter-se direitos, é preciso comprá-los. Bem sabemos que meia dúzia de executivas se deram bem na vida (ainda que sim, sofram de machismo em seu ambiente de trabalho), mas para a mulher trabalhadora ainda há um longo caminho a ser traçado.

É por isso que afirmamos: o 8 de março é classista. Socialista.
O 8 de março é vermelho.



[1] KOLLONTAI, Alexandra. International Women's Day. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/kollonta/1920/womens-day.htm
[2] Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida - SOF: Sempreviva Organização Feminista. Disponível em: http://www.sof.org.br/publica/Dia_Internacional_da_Mulher-SOF-Em_busca_da_memoria_perdida-ATUALIZACAO2010.pdf
[3] KOLLONTAI, Alexandra. Uma Celebração Militante. Disponível em: http://www.esquerda.net/dossier/uma-celebra%C3%A7%C3%A3o-militante , texto integral em inglês: http://www.marxists.org/archive/kollonta/1920/womens-day.htm
[4] Idem
[5] Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida - SOF: Sempreviva Organização Feminista. Disponível em: http://www.sof.org.br/publica/Dia_Internacional_da_Mulher-SOF-Em_busca_da_memoria_perdida-ATUALIZACAO2010.pdf